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segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Opinião. 'Meu medo é dessa geração educada atrás de muralhas'

Como o senhor consegue manter uma atividade tão intensa?
Há anos venho trabalhando com escritórios associados, em geral comandados por meus ex-alunos da FAU-USP. Costumo brincar, dizendo que foi uma forma de institucionalizar minha vagabundagem. Na verdade, foi a saída que encontrei para sobreviver. A minha geração desenhava com lápis, papel e régua T. Hoje, tudo é feito no computador. E, na minha idade, essa transição é muito difícil. Então, ou eu parava de trabalhar por incompetência técnica ou trabalhava associado.
O que sente ao ver o caos em que as cidades estão se transformando?
A graça da cidade está justamente no fato de que ela existe antes que seja construída. Ela é a concretização do desejo dos homens de estarem juntos. Quando se quebra isso, quando a cidade é abandonada, rejeitada, quando a população se afasta da cidade e vai procurar “bairros residenciais” afastados, ela degenera.
Adianta enfeitá-la, criar “arquiteturas”?
Não. É preciso trazer a população de volta. Nós, arquitetos, não agüentamos mais essa idéia de ocupar edifícios históricos restaurados com centros culturais. É uma visão de espuma flutuante, uma maneira de se pôr dinheiro para não fazer nada. A questão fundamental da cidade é a casa, a cidade é feita de casas. E hoje parece que estamos condenados a não ter casas e sim uma inflação de museus. Vivemos um processo de terrível e dantesca desurbanização. Quando se fala em urbanismo, antes da forma o que nos interessa é o comportamento.
Mas o que é a cidade para você?
A cidade é convívio, é ir a pé ao cinema, ao teatro, ao restaurante. É ir à banca comprar jornal no domingo. É morar ao lado do metrô. A cidade é o lugar da reprodução do conhecimento. Só que hoje as pessoas preferem morar em condomínios, cercadas de segurança particular, armada até os dentes, tomando banho na sua piscina particular. Em conseqüência, há menos vida em grupo... E aí, o que mais me preocupa é o futuro desses jovens, criados e educados nesses condomínios, cercados por muralhas, de onde saem em carros blindados por ruas muitas vezes transformadas em corredores murados, para se “divertirem” em shoppings, que é o que há de mais negativo do ponto de vista da cidade. Essa é uma forma estúpida de criar e educar a juventude.
Mas há também os que estão abandonados pelas ruas.
Não temo aqueles que estão abandonados nas cidades, pois eles estão ocupando a cidade. Meu medo é dessa geração toda educada atrás dessas muralhas, mais predispostos a uma sociedade fascista do que democrática. Cidadania se aprende na rua. Os jovens, hoje, estão voltados para dentro. E quando uma pessoa vive para si, torna-se perigosa para ela mesma.
Vivemos uma crise de valores?
Sem dúvida, uma crise de pouca reflexão, de pouca profundidade na reflexão, aliada a uma idéia de que o consumismo satisfaz - quando, na verdade, ele não pode satisfazer. Você pode comprar um objeto, mas não pode comprar uma idéia.
Esse processo tem volta?
Terá que ter, pois disso depende nossa sobrevivência como seres humanos. Só que a cada dia essa volta fica mais longa e mais difícil, uma vez que o diâmetro está se expandindo. Uma cidade como São Paulo precisa ser reestruturada, recomposta e para isso a única solução é tornar a cidade mais humana, mais habitada. A expressão mais pungente, mais tocante da expressão humana, é mais fácil encontrar entre os habitantes de rua do que numa reunião no Jockey Club. A esperança está em que a própria inteligência e o comportamento da sociedade reorientem esses horizontes.
No seu convívio, você consegue vislumbrar essa esperança realizada?
Tenho bastante contato com jovens arquitetos. Os escritórios vivem cheios de estagiários. Eu os vejo muito preocupados com o futuro do planeta. Apesar disso, vejo um perigo comum entre os jovens de hoje: o excesso de preocupação com o sucesso pessoal. O frenesi de cada um com uma idéia do tipo “eu também posso ser campeão”. Por experiência pessoal, sei que o bom é quando você procura fazer bem o seu trabalho e, de repente, se surpreende porque ele foi reconhecido por alguém. O prêmio não deve ser nunca o objetivo único de um trabalho.
Durante os governos militares você foi cassado, impedido de dar aulas e trabalhar. Como foi isso?
Até hoje não sei exatamente o porquê da minha cassação, perguntem a quem me cassou. Mas, naquela época, todos tínhamos alguma militância política. Eu freqüentava reuniões do Partido Comunista, porque defendia idéias comuns às de alguns amigos, mas nunca fiz política partidária. Sempre estive envolvido com a dimensão social da arquitetura.
E hoje, o senhor tem alguma participação política?
Primeiro, é preciso deixar claro que, para mim, qualquer atividade que se tenha na sociedade terá sempre uma dimensão política. Por isso, estamos sempre participando da política de alguma forma. Quanto ao noticiário, acompanho, como todo mundo, mas prefiro não opinar. É um assunto muito amplo, fundamental na vida de todos nós. Uma resposta poderia ser que a política é hoje instrumento fundamental do urbanismo.

Entrevista de Paulo Mendes da Rocha para Silvia Penteado, publicada no O Estado de São Paulo, na coluna Direto da Fonte de Sônia Racy em 18/11/2007.