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terça-feira, 30 de setembro de 2014

FGTS. Uma estranha história de gatos e gatunos



Esta é a primeira parte de uma reportagem publicada pela Revista República, em março de 2001. Muitos dos gatos citados continuam por aí, ocupando cargos políticos ou de confiança dos governos, com acesso ao dinheiro público. Neste momento em que o FGTS sofre achaques por todos os lados parece oportuno reavivar nossa memória para evitar que os gatunos travestidos de "bichanos" destruam o maior patrimônio dos trabalhadores brasileiros.

Esta é uma história estranha.
Ela começa em fins de agosto de 2000. Uma ação de 2º trabalhadores de Caxias do Sul (Rio Grande do Sul) foi julgada pelo STF (Supremo Tribunal Federal). O que se decidiu foi a forma de correção do saldo das contas do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). E os 20 de Caixas puderam comemorar – e não só eles. O STF decidiu que os saldos deveriam ser corrigidos do expurgo sofrido pelos Planos Verão (de junho de 1989) e Collor 1.
De quanto seria isso? O STJ (Superior Tribunal de Justiça) fixaria o percentual. E o fez em outubro: 68,9%.

Dois dias depois, o presidente Fernando Henrique Cardoso, às vésperas das eleições municipais em todo o país, anunciava que o governo estenderia o direito à correção a todos os trabalhadores. Era a vitória completa. Um novo esqueleto tinha sido descoberto nos castelos da República. E, dessa vez, favorecendo os trabalhadores.

Mas, de fato, o presidente fez mais do que uma promessa. Ele estabeleceu um ritual de negociação, que seria conduzido pelo ministro do Trabalho, Francisco Dornelles (PPB-RJ). E o ministro foi logo dizendo que o FGTS era um fundo privado e o Tesouro nada tinha a ver com a história. Segundo ele, caberia aos trabalhadores e empresários, com o auxílio abnegado do governo, encontrar uma solução que tornasse viável o pagamento.

Eis por que é esta uma história estranha.
O que Dornelles propunha, ao fim a ao cabo, era e é absolutamente insólito. Em resumo: os mesmos trabalhadores que comemoram a vitória na Justiça teriam que se cotizar para cobrir o rombo, que, naquela altura, o Banco Central estimava em R$ 38,4 bilhões e hoje se estima em R$ 43 bilhões.
A essa proposta, que fere a lógica mais comezinha, seguiu-se um festival de outras ainda mais insólitas e exemplares do apreço do governo, especialmente de seus burocratas, pela questão social.

Veja-se, por exemplo, a proposta defendida pelo secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Amaury Bier, que sugeriu capitalizar o FGTS usando a multa de 40% paga pelos empresários aos trabalhadores demitidos sem justa causa. Ele argumenta que a lei manda os empresários pagar a multa, mas não estabelece que o dinheiro é do trabalhador e, por isso, poderia ficar com o fundo.

A proposta de Bier se resume, enfim, em cobrir o rombo com uma apropriação indébita. Pior.Se aceita, talvez fosse o caso de os trabalhadores torcem pelo aumento do desemprego, já que, assim, haveria mais multas, mais apropriações indébitas seriam feitas e mais rapidamente o FGTS dos que restarem empregados seria capitalizado. Os sobreviventes deveriam sorrir sobre os escombros?

Outras versões nesse celeiro bestialógico inundaram o noticiário: aumentar a contribuição sobre a folha de salários, transferir para o FGTS recursos que seriam destinados ao sistema S (Senai, Sesi e Sesc), reduzir os juros das remunerações do saldo, etc., etc., etc. No fim, a lógica permanecia a mesma anunciada pelo ministro Dornelles: trabalhadores e empresários teriam de arrumar o dinheiro de uma ou de outra forma, cabendo ao governo apenas usar a sua, aparentemente, infindável criatividade para bolar as sugestões mais descabidas para tungar o dinheiro dos trabalhadores.

E os meses assim passaram. Porque – e esta é outra parte estranha dessa estranha história – trabalhadores e empresários parecer ter aceitado entrar na armadilha de discutir a correção dos saldos do FGTS como se só houvesse passivos nesse fundo. Como se o dinheiro entrasse, ficasse parado e, por milagre, rendesse.

Coloque uma nota dentro de um livro, Alice no País das Maravilhas, por exemplo, e, a menos que se acredite que o gato come o rendimento, vai-se concluir o óbvio: dinheiro parado não rende. R$ 5 mil ou R$ 5 guardados no livro por séculos, desprezada a inflação, continuarão a ser o que sempre foram, nem mais nem menos.

Donos de botequim sabem. Livros-caixa sabem. Existem duas colunas. Entradas e saídas. Passivos e ativos. E o debate se passa – esse estranho debate – como se só houvesse um depósito e uma obrigação de pagamento, que rende juros e correção. Até parece que o FGTS não faz nada como dinheiro depositado e que, por milagre, ele rende.

Mas já que essa história beira o surrealismo, o inacreditável, que se peça a ajuda do gato de Alice, com seu sorriso que não desaparece, para situar corretamente a questão.


(Continua...)
(Revista República, Ano 5, nº 53, março de 2001, páginas 20 a 27.)