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domingo, 26 de junho de 2016

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL. PORQUE MARES TRANQUILOS NÃO PRODUZEM BONS MARINHEIROS.


Mauro Antônio Rocha (1)


A alienação fiduciária de coisa imóvel ingressou no ordenamento jurídico pátrio por meio da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, passou a ser praticada pelas instituições financeiras em 2002 nos financiamentos imobiliários e foi adotada como o principal instrumento para a garantia de empréstimos e financiamentos em geral a partir da promulgação da Lei nº 10.931, de 02 de agosto de 2004, que desatou alguns nós da lei de regência e estendeu sua utilização para as demais operações financeiras.

Nos quase vinte anos de existência da lei – ou quinze anos de efetiva aplicação – a alienação fiduciária de coisa imóvel navegou nas águas serenas da estabilidade econômica, situação de pleno emprego e reajustes reais de salários sem ter sido submetida ao necessário teste de estresse que pudesse revelar suas deficiências e defeitos. Nesse período, foram firmados milhões de contratos de crédito com garantia fiduciária, dos quais parcela proporcionalmente irrelevante foi levado à execução extrajudicial por inadimplência – para consolidação da propriedade em nome do credor – e um número reduzido de conflitos foram judiciarizados.

Mudanças no humor político e econômico no país, no entanto, sugerem o recrudescimento da inadimplência contratual, com o agravamento do quadro de cobrança forçada das dívidas e, consequentemente, da reação judicial dos devedores e fiduciantes.

Ocorre que por conta da quietação e calmaria dos tempos bons os estudos sobre o instituto ficaram limitados à simplicidade dos procedimentos legais de concessão do crédito, quitação da dívida, consolidação da propriedade e execução extrajudicial do débito, de forma que os operadores do direito envolvidos parecem despreparados para compreender os atalhos e desvios que começam a surgir, assim como, os registradores de imóveis parecem dispostos a acumular exigências imprecisas e desnecessárias, que às vezes são atendidas pelos implicados com adaptações contratuais estapafúrdias e outras vezes contestadas com argumentos despropositados e descolados da lógica jurídica do instituto para, finalmente, serem levadas ao Judiciário na forma de ações, dúvidas ou pedidos de providências mal formulados, onde são examinadas burocraticamente e provocam decisões que não atendem aos interesses das partes e ao desejo de preservação jurídica desse indispensável instrumento de garantia dos créditos.

Exemplo disso é a reiterada negativa de cancelamento da averbação de consolidação de propriedade, a requerimento formal das partes, após a quitação da dívida pelo devedor decorrido o prazo legal para a purgação de mora, porque, no entender de alguns oficiais de registro, o art. 27 da Lei nº 9.514/97 é norma cogente que determina a realização de leilão público para a venda de imóvel objeto de consolidação da propriedade por conta do inadimplemento contratual e, portanto, essa obrigação não pode ser afastada para atender aos interesses das partes.

Ora, a lei admite o cancelamento do registro da compra e venda, da alienação fiduciária em garantia, da arrematação ou adjudicação em hasta pública (art. 250 da Lei nº 6.015/1973) e não há justificativa jurídica razoável para se negar o cancelamento da consolidação apenas e tão somente pela suposta cogência normativa ou pela natureza meramente declaratória da averbação. A simplicidade dos argumentos denegatórios contrasta com a relevância material e ideológica do bem jurídico tratado.

Mais atrapalha do que ajuda a existência de confusos precedentes do Superior Tribunal de Justiça que admitem o recebimento do crédito e a liquidação da dívida, sem determinar o cancelamento da consolidação da propriedade, deixando subentendida a necessidade de realização de um novo negócio jurídico que, a rigor, independeria de qualquer autorização judicial.

Nada impede, a nosso ver, o cancelamento da averbação de consolidação, retornando a titularidade do imóvel a situação anterior, restabelecendo-se, se for o caso, a alienação fiduciária e possibilitando ao devedor a manutenção do bem da vida e ao credor que proceda à quitação da dívida ou que retome o curso do contrato, como medida de justiça, que atende ao direito constitucional à moradia e aos princípios de celeridade e economia processual.

O excesso de zelo dos registradores de imóveis pode ser identificado também na negativa de averbação de instrumentos aditivos contendo alterações das condições primárias de contratos de mútuo e outros negócios jurídicos garantidos por alienação fiduciária de bem imóvel, deixando inconclusos negócios jurídicos já contratados, além de obstar e prejudicar a realização de outras inúmeras operações de crédito rotativo no mercado financeiro.

É da natureza dos negócios jurídicos de crédito financeiro que, no curso do contrato, surjam situações que exigem operações complementares ou suplementares, modificativas das condições originárias, consubstanciadas em aditamentos contratuais, com cláusulas específicas de renegociação de valores, termos e condições da dívida vincenda ou de consolidação e correspondente confissão de parcelas vencidas – e tudo isso foi previsto, compreendido e autorizado pelo § 4º do art. 29, da Lei nº 10.931/2004 que prevê o aditamento, a retificação e a ratificação da Cédula de Crédito Bancário.

Não há, portanto, impedimento ou vedação legal para o aditamento do contrato de mútuo, obedecidos os requisitos do documento ser escrito, datado e conter os mesmos requisitos exigidos do instrumento principal ou da cédula de crédito bancário, decorrente de correção, inclusão ou exclusão de cláusulas, das condições ou termos no contrato original, com a intenção de modificar, esclarecer ou complementar o negócio jurídico em vigente, desde que, evidentemente, mantido o negócio jurídico originário.

Contudo, em diversas ocasiões a Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo tem considerado corretos os atos praticados pelo registrador , sob a justificativa de que o título, independentemente de nominado como aditamento, representa novo negócio jurídico fiduciário, uma vez que altera forma de pagamento taxa de juros e condições de pagamento, caracterizando inegável novação.

Parece evidente que nem toda modificação ou retificação ocorrida no contrato principal repercute diretamente no contrato acessório de alienação fiduciária em garantia. A alteração das condições intrínsecas do mútuo, tal como o aumento ou redução do limite de crédito ou do prazo de amortização, bem como das taxas de juros e encargos aplicáveis, não provocam nenhuma alteração nas condições da garantia, devendo ser averbado o instrumento apenas para publicidade e atualização da obrigação garantida. Nesse sentido, a decisão da mesma CGJ no Processo 83.549/2010: “Ora, na medida em que, de acordo com a legislação de regência, as cédulas de crédito bancário prescindem de registro para que sejam válidas e eficazes, mas as garantias por elas constituídas devem ser registradas para valer contra terceiros, resta claro que o registro ‘in casu’ não é verdadeiramente do título, mas sim da garantia nele prevista”.

Demais disso, cabe ressaltar que a novação não se presume e de acordo com o art. 361 do Código Civil, não havendo ânimo de novar, expresso ou tácito, mas inequívoco, a segunda obrigação confirma simplesmente a primeira e que, somente ocorre nas hipóteses previstas no art. 360 da Código Civil, quando o devedor contrai com o credor nova dívida para extinguir e substituir a anterior, quando novo devedor sucede ao antigo, ficando este quite com o credor ou, ainda, quando, em virtude obrigação nova, outro credor é substituído ao antigo, ficando o devedor quite com este.

A incompreensão registral também transparece quando é negada a averbação da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, após regular intimação dos devedores fiduciantes e decurso do prazo de purgação da mora, por conta da existência de averbações de penhora ou indisponibilidade dos bens dos fiduciantes.

Do contrato de alienação fiduciária decorrem a propriedade fiduciária resolúvel, com escopo de garantia, conferida ao credor e o direito real, conferido ao devedor ou fiduciante, de adquirir novamente a propriedade plena do bem após o adimplemento da obrigação contraída. Esse direito real de aquisição, atualmente, previsto no art. 1368-B do Código Civil, é um direito expectativo consistente no recobro da propriedade, uma vez cumprida a condição , portanto, indeterminado e limitado ao quantum apurado no momento da liquidação da dívida.

Ora, se o direito real de aquisição é expectativo, dependente do cumprimento de determinadas condições para sua realização e não incidente sobre a propriedade imobiliária, não há porque negar-se a averbação da consolidação da propriedade em nome do credor.

O direito real de aquisição corresponde – de forma simplificada – ao valor de mercado do imóvel menos o saldo devedor da dívida que deu origem à alienação fiduciária e seu valor econômico será tanto maior quanto menor o valor da dívida ou do saldo devedor da dívida. Assim, por exemplo, o direito real de aquisição decorrente de um contrato de financiamento imobiliário com pagamento de parcelas mensais do preço será maior na medida em que mais parcelas tenham sido pagas pelo fiduciante. Por outro lado, num contrato de empréstimo bancário com pagamento total ao final do prazo contratual o direito real de aquisição será – provavelmente – negativo e assim permanecerá durante todo o período.

Se, no entanto, o fiduciante inadimplir as obrigações ou deixar de pagar as prestações, justificando a consolidação da propriedade, o valor do bem continuará sendo seu valor de mercado reduzido do valor total da dívida; enquanto isso, o direito real de aquisição restará limitado à diferença entre o valor total da dívida e o montante obtido em hasta pública pelo bem, podendo, em qualquer das hipóteses acima, o terceiro – credor da indisponibilidade – efetuar o pagamento da dívida e subrogar-se no crédito em relação ao devedor.

Resta claro que a decretação de indisponibilidade de bens do devedor ou fiduciante não altera as condições do negócio jurídico, nem a natureza jurídica dos direitos decorrentes da alienação fiduciária, não havendo qualquer impedimento para a averbação da consolidação da propriedade em nome do credor. Da mesma forma, a consolidação da propriedade não importará em prejuízo de nenhuma ordem para o credor interessado na indisponibilidade, cujo direito – limitado e indeterminado – continuará protegido (da mesma forma prevista para a proteção enquanto direito do fiduciário) pela realização dos leilões e liquidação de seus interesses pelo recebimento do valor que sobejar a dívida.

As situações acima são recorrentes e foram expostas com a intenção de colaborar para a compreensão dessas operações e sem qualquer pretensão de estabelecer critérios de entendimento, na esperança de despertar os envolvidos para o aprofundamento do estudo do instituto da garantia fiduciária e em busca de uma solução para a manutenção dos negócios financeiros com a almejada e necessária segurança jurídica em tempos de inquietação, porque mares tranquilos não produzem bons marinheiros .


NOTAS: (1) O autor é advogado graduado pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduado em Direito Imobiliário e Direito Registral e Notarial. Coordenador Jurídico de Contratos Imobiliários da Caixa Econômica Federal.
(2) CGJSP 2013/146.225, 2013/151.796 e 2015/31.763
(3) Lima, Frederico Henrique Viegas de. Da alienação Fiduciária de coisa imóvel. Curitiba: Ed. Juruá, 2011, p. 167.
(4) Provérbio atribuído à cultura africana